Billie Holiday morreu com apenas 50 dólares presos numa das coxas, apesar de se ter tornado uma lenda do jazz e pioneira para gerações de cantores.

No final da sua vida, estava exausta pelo consumo de heroína, a perseguição policial e um marido que a espancava com tanta força que a cantora precisava de manter as costelas amarradas durante os seus concertos.

Quando o seu corpo parou de lutar em 1959, aos 44 anos, Holiday estava com uma prisão decretada numa cama de hospital pelo uso de drogas e as suas economias limitavam-se aos 50 dólares dados por um jornalista interessado numa entrevista.

Com o centenário do seu nascimento, dia 7 de abril, emerge uma imagem mais rica da sua vida e obra. Vários artistas prestam homenagem não apenas a uma voz inefável mas também à sua luta contra o racismo.

Quando o escritor Lanie Robertson escreveu a peça "Lady Day at Emerson's Bar and Grill", em que a cantora norte-americana revisita a sua vida à frente de um público escasso numa de suas últimas atuações, montada pela primeira vez em 1986, "a sua imagem era depreciada por uma grande parte da população negra dos Estados Unidos", lembra o autor.

"Ela era um modelo terrível, viciada, bêbada, promíscua, não era uma 'boa mulher', explica Robertson.

"Mas houve um ano em que houve uma mudança total na opinião da sociedade sobre Billie Holiday. Ela passou a ser vista como a combatente pelos direitos civis, uma mulher que aguentou os piores pré-julgamentos e discriminação racial", acrescenta.

Segundo ele, "ela é um símbolo dos negros que combateram e lutaram pelos seus direitos".

Canções de engajamento

Billie Holiday foi vítima de racismo até mesmo em Nova Iorque, onde precisava de utilizar o elevador de serviço em hotéis de luxo.

Foi a primeira estrela do jazz a expressar a opressão dos negros, interpretando "Strange Fruit", o conto horripilante de um linchamento, pela primeira vez em 1939. Esta canção é muitas vezes associada ao seu nome.

"Quando ela cantava quase podíamos ouvir uma mosca voar. O público mergulhava no silêncio", lembra Mikki Shepard, produtora do Apollo Theatre.

Esta célebre sala de concertos de jazz no Harlem era uma das únicas, perto do Carnegie Hall, onde Holiday podia atuar no final de sua carreira devido a uma nova lei. O Apollo vai celebrar o seu centenário com uma série de eventos, incluindo uma atuação de Cassandra Wilson.

Billie Holiday nasceu na Filadélfia, filha de uma empregada doméstica e pai ausente. Não teve qualquer educação musical. Nas suas memórias, explicou ter aprendido jazz ao fazer pequenos serviços em bordéis quando era criança.

"Acredito que ela tocava as pessoas porque era verdadeira, autêntica", considera Mikki Shepard.

"O que eu acho fantástico, mesmo quando a ouço agora em 2015, é a sua grande musicalidade", diz Sara Lazarus, artista norte-americana que vive em Paris. "Desde o início, ela era alguém fora do comum. As pessoas achavam que ela arrastava muito a voz", acrescenta.

"Na verdade, muitas vezes, no final das suas frases, ela descia a voz, um pouco como um saxofone que entoa um último suspiro", explica Sara Lazarus.

Segundo a artista, dois elementos essenciais fizeram de Billie Holiday uma cantora extraordinária: a sua maneira de reescrever uma melodia e a forma rítmica de cantar uma frase. "Ela dava vida e significado às músicas, muitas vezes com um pouco de floreado, alterando a melodia e o ritmo", diz.

"Foi uma verdadeira. Ouvia Bessie Smith e Louis Armstrong, com quem aprendeu a liberdade rítmica, como colocar as palavras e as notas", confirma Franck Bergerot, editor da Jazz Magazine. "Ao mesmo tempo que brincava com o drama da sua vida, tinha uma forma de cantar deslumbrante", descreve.

Desta forma, "Lady Day" trouxe, durante seus primeiros anos como cantora profissional nos anos 1930, um novo tom, quase subversivo, para a época.

'Timing infalível'

O cantor belga David Linx também destaca a voz única. "Foi, talvez, a primeira cantora a ser extremamente criativa no fraseado. Ela podia alcançar o fim do tempo, mas para ser capaz de cantar no final do tempo, tens de ter um ritmo individual muito forte. Tinha um timing infalível", assinala o cantor.

A estas qualidades juntam-se o timbre da sua voz, espumante e clara na sua juventude, antes de definhar devido aos vários abusos - drogas ilícitas, álcool, tabaco - que marcaram a vida de "Lady Day".

A isto acrescenta-se, diz Franck Bergerot, "uma grande sobriedade na interpretação" da parte de um cantora que "nunca forçava uma expressão".

Billie Holiday imprimiu a sua assinatura vocal em grandes sucessos como "You've Changed", "Yesterdays" ou "Lover Man". Também revelou o seu talento como compositora ao coescrever clássicos como "Don't Explain", "Somebody's On My Mind" ou "God Bless the Child".

A vida de Billie, que "viveu a 200%", segundo David Linx, entre ascensão e queda, encenada na sua autobiografia "Lady sings the blues", escrita pelo jornalista William Duffy e publicada em 1957, também alimenta a literatura .

Foram recentemente publicados dois livros: "Vivre cent jours en un", onde Philippe Brossard tenta retratar os cem dias de uma digressão europeia concluída em novembro de 1958, menos de um ano antes de sua morte, e "Lady in Satin, Billie Holiday, Portrait d'une diva par ses intimes".

@AFP