Palco Principal - Começaste por «tirar» Física, mas depois mudaste para Literatura...

B Fachada - Comecei por tentar tirar Física e depois fui tentar tirar Literatura, mas não acabei nenhum curso.

PP - Mas a tua intenção não era seguir vida académica?

BF - Sim, também. Se acabasse, seria para isso.

PP - O que aconteceu?

BF - Comecei a trabalhar. E deixei de ter tantas razões para ir à faculdade... Faltam-me cinco cadeiras e nenhuma é extraordinariamente interessante. Por alguma razão foram as que ficaram para o fim...

PP - Lançaste, ao longo de quatro anos, 11 trabalhos, entre LPs e EPs. Tinhas assim tanta coisa para dizer?

BF - Não tenho mais coisas para dizer do que as outras essas pessoas...

PP - Era um objetivo?

BF - Era, porque, para mim, ser profissional era isso: fazer as coisas à antiga. Só estou a fazer as coisas a um ritmo estranho neste nosso contexto, que é limitado, não é um contexto normal. Não havia uma indústria musical propriamente fértil, não tivemos.

PP - Mas, agora, estamos a ter?

BF - Talvez...

PP - Surgem bandas um pouco por todo o lado, gravam-se discos em casa...

BF - Sim, é verdade. Agora está mais fértil, mas... O “Sgt. Peppers” [The Beatles] foi quase todo, se não todo, gravado no início de 1967, e o meu pai deu-me, há pouco tempo, o seu exemplar, assinado em julho de 1967 - e ele comprou-o cá. Foi quase mais rápido do que no tempo do digital [risos] e, na altura, as canções não iam sequer completamente feitas para estúdio. Eles foram para estúdio fazer o disco, gravaram-no, editaram-no, e o disco chegou a Portugal no espaço de quatro meses.

PP - Sei que ouvias muita música quando eras mais novo, ouvias muito Toquinho...

BF - Sim, muita música brasileira. Porque o meu pai esteve no Brasil em ‘85 e trouxe muitos discos. O meu pai é melómano, tem muitos discos e, quando esteve lá, trouxe muita coisa.

PP - Tens alguma formação musical?

BF - Sim, clássica. Estudei no Instituto Gregoriano de Lisboa até aos 17 anos. Comecei a estudar piano aos seis anos.

PP - Os teus pais puseram-te lá porque a música era importante para eles?

BF - Sim, e porque eu, aparentemente, demonstrava alguma aptidão. Pelo menos, diziam-me isso. Não acho que tivesse especial aptidão para aquele tipo de música, mas gostava. Tinha mais resistência do que a média. Conseguia trabalhar um bocadinho mais de tempo. Conseguia ficar a ouvir música um bocadinho mais de tempo. Tinha mais treino, mais prática.

PP - Ainda te lembras do primeiro disco que compraste? Ou do primeiro que ouviste sem influência do teu pai?

BF - Isso não existe. As audições são todas familiares. O primeiro disco que eu comprei foi, provavelmente, o primeiro do Tricky [“Maxinquaye”, 1995]. O meu pai costumava oferecer dois ou três discos no Natal, a cada filho. Nesse ano, ele comprou o segundo disco do Tricky, mas depois achou-o muito pesado para oferecer. Eu gostei muito e acabei por comprar o primeiro. Mas eu sempre comprei muitos poucos. A minha coleção de discos de infância e da adolescência é quase toda oferecida pelo meu pai.

PP - Tinhas essa vantagem... Mas nunca apresentaste ao teu pai algo que ele não conhecesse?

BF - Só agora, os meus amigos e as minhas coisas. Porque eu já sou de uma geração que não sabe comprar discos, não sou comprador de música, tenho mais jeito para comprar livros. Não sei procurar, não estou habituado. O meu pai é que sempre teve esse papel, mesmo com a passagem para a Internet. O de descobrir bandas novas, ler as criticas - tudo isso era muito mais do foro do meu pai do que do meu.

PP - Pode dizer-se que o teu papel em relação à música é pacífico?

BF - Não, é impossível...

PP - Na medida em que não procuras...

BF - Procuro, procuro no meio da coleção...

PP - Coleção que já tens...

BF - Sim, porque no meio de mil ou dois mil discos, quando se é pequeno, é impossível ser-se passivo. Se fosse passivo, não ouvia nenhum. Tenho de ir buscá-los e ouvi-los.

PP - Mas não és pró-ativo na procura de coisas fora daquilo que já tens...

BF - Agora, um bocadinho mais. Com o Bandcamp, tento ver umas coisas mais independentes, principalmente de outros países, como México, Polónia... De resto, uma vez por ano, ia ver o que é que tinha saído. Nesse aspeto continuo a ser assim. Tenho um contacto mais semestral, vou ver o que saiu, o que diz a crítica... Agora com o Spotify também é mais fácil. Mas não, não sou um consumidor de cultura compulsivo. Prefiro consumir as mesmas coisas muitas vezes do que procurar coisas novas. Com a literatura ainda sou mais radical: é muito raro ler um livro que tenha menos de 40 ou 50 anos.

PP - Porquê?

BF - Porque não é preciso, porque ainda tenho muita coisa por ler. Posso ler um livro, mas fico com a sensação de que poderia ter lido o “Dom Quixote de la Mancha” [Miguel Cervantes, 1605/1615] outra vez, poderia ter lido Aquilino [Ribeiro]. E com os discos é a mesma coisa: posso ouvir uma coisa nova, mas depois acho que podia ter ido ouvir o “Pet Sounds” [Beach Boys, 1960] outra vez. Às vezes, estou a ouvir discos muito bons, que até me causam algum impacto, mas depois vou ouvir um disco mais antigo.

PP - Mas não há coisas novas que valem a pena ser ouvidas?

BF - Há sempre coisas especiais de quando em quando. Mas não posso estar à espera que apareçam coisas especiais todos os meses. Acho que na era da informação é preferível filtrar de mais do que de menos.

PP - E livros, do que é que gostas de ler? Portugueses, franceses, russos, ingleses..

BF - Russos, não, porque não gosto de ler livros traduzidos. Leio mais literatura portuguesa...

PP - Mas há boas traduções...

BF - Há, mas não é o original. Mesmo o Aquilino a traduzir o “Quixote...”, não é o “Quixote...” [risos]. Livros espanhóis, da América do sul - só esta já é um mundo. Depois há livros que são mundos em si. Se quiser passar a vida a ler “Dom Quixote...”, posso passar, ou ler só o “Pedro Páramo” [Juan Rulfo, 1955], que são 50 páginas, posso fazê-lo, mas a minha escola da literatura portuguesa é o [Alberto] Pimenta, o Aquilino [Ribeiro] e o Camilo [Castelo Branco].

PP - Mas o Pimenta sai dessa seleção...

BF - Não sai nada...

PP - É um crítico social, mas é contemporâneo...

BF - Sim, porque não viveu na mesma altura, mas acho que isso é uma questão de distância. Mesmo o Aquilino e o Camilo... É quase como se fossem a mesma pessoa, a esta distância. Vejo aquilo como sendo uma continuidade e o Pimenta é. Claro que aqui estamos a falar de arte erudita, há uma componente de originalidade e de invenção que é muito mais intensa do que no que faço. Eu estou só a processar o que já existe, não sou um artista. Na literatura, o indivíduo salta mais para frente, fica sempre mais à vista. Mas não encaro como sendo diferente, até porque parte da minha cena com o Aquilino vem do Pimenta. Cheguei aos dois pelo meu pai.

PP - O teu pai tem uma grande influencia em ti...

BF - Tem. Apesar de tudo, cresci com oportunidades que os meus pais não tiveram. Seria um absurdo não aproveitar isso, ter dois mil discos e mil livros em casa. Já tive de começar a fazer tudo do principio quando comecei a fazer canções - já foi suficiente.Tive a sorte de encontrar um sítio onde podia estar à vontade, abriram-me 150 portas para eu escolher uma e eu tive a sorte de escolher a porta certa.

PP - E sabes qual é o caminho que segues?

BF - Sei perfeitamente. É o meu trabalho, é o que eu faço o dia todo, mas ainda hoje tenho tendência a dispersar. E posso dispersar muito. Posso ter vontade de ir programar ou de, pela vigésima vez na minha vida, ir tentar aprender a desenhar, que é uma cena que sempre quis fazer e nunca consegui.

PP - Esse tentar fazer outras coisas não pode ser uma complemento àquilo que já fazes?

BF - Não, porque eu não sei fazer outras coisas.

PP - Mas dás a entender que te estás a desviar. Essas dispersões podem não ser completamente opostas...

BF - As dispersões resultam, geralmente, de eu encontrar alguém que faz essa coisa de uma maneira parecida com a minha maneira de fazer música, e então vou tentar fazer isso. Seja um ilustrador, um programador, qualquer coisa que eu ache – até costumo fazer essa piada: “este gajo faz as coisas à Fachada”!

PP - E o que é fazer à Fachada? É sozinho?

BF - Não sei explicar, sinto empatia com o processo, mas tem a ver com o ser sozinho...

PP - Colocas muitas vezes o Fachada nas tuas canções...

BF - Sim.

PP - É narcisismo?

BF - Não... É, em parte, narcisismo, mas é um narcisismo de estilo. Com algumas das coisas que eu faço, tenho uma relação de estranhamento, porque há muitas coisas que eu estranho porque sou eu que as estou a fazer. Faço o que vejo que está por fazer: por que é que não hei-de fazer autorreferências numa canção? Cria um tipo de estranhamento e de significado tão engraçado... Porque tu escreves, mas não és tu o narrador, mas depois o narrador fala de ti. O jogo de espelhos acaba por ficar muito denso. E eu posso explorá-lo porque foi muito pouco explorado na nossa música. É um recurso estilístico de alguns tipos de fado, como o [Alfredo] Marceneiro, que dizia o nome dele, ou o Camané, que tem uma canção muito antiga em que diz o nome dele, gravada tinha ele oito ou nove anos.

PP - Fizeste uma paragem sabática, mas estiveste a trabalhar durante esse ano. Por que é que depois desse ano não surgiste com um trabalho completo?

BF - Porque foi tudo para o lixo.

PP - Era esse o teu objetivo: tudo o que fosse produzido iria para o lixo?

BF - Não, o objetivo era tirar um ano para fazer experiências, por isso é que se chama um ano sabático e não um ano de férias [risos]. Era um ano de experiências, achei que ia fazer muito mais diferença do que fez. Achei que ia voltar num formato completamente diferente.

PP - Formato musical?

BF - Sim, e isso não aconteceu. Foi esse o resultado da experiência: deitar fora até fazer as pazes comigo.

PP - Fizeste as pazes?

BF - Sim. Quando parei, achei que, quando voltasse, não ia tocar nenhuma música antiga. E acebou por não ser assim, e não foi por nenhuma razão externa - foi mesmo porque, a certa altura, tive mesmo vontade de juntar as canções antigas às novas.

PP - Tens tendência para planear as coisas. Mas sabes que, como aconteceu agora com o ano sabático, nem sempre o que planeamos resulta como gostaríamos...

BF - O resultado é sempre diferente do plano. Esta é a ordem de trabalhos, mas o resultado nunca pertence ao plano. Acho que, se estiver sempre no meio do meu papel, daquilo que é a minha função, aumento a probabilidade de esta ser a minha vida e, quanto mais certo for aquilo que eu faça agora, mais certo vai ser o que vou fazer a seguir. Acredito que, se fizer o meu trabalho direitinho, sem me desviar, vou estar sempre a viver disso, porque é a minha vida. As coisas acontecem em avalanche, umas coisas influenciam outras. Tudo isso acaba por bater certo e bate mais certo quanto mais certo estou naquilo que tenho para fazer. Na verdade, o autor é uma espécie de fantasma, não é de todo o elemento mais importante da equação. Eu posso achar que tenho grandes ideias para fazer um disco com grande orquestra, mas, para todos os efeitos, o que eu tenho para fazer é o que eu faço. É música para ser tocada e ouvida nos sítios onde se toca e ouve música. Eu posso fazer uma ópera, mas nunca na minha vida vou conseguir ir tocar uma obra ao São Carlos, por isso, por que é que estou a fazer uma ópera?

PP - Nunca pensaste criar música para outras pessoas tocarem contigo?

BF - Sim, já tive a intenção e vontade de criar música para outros tocaram. Era um dos meus projetos para este anos sabático. Tentar encontrar uma banda. Mas eu nunca fiz esse trajeto. Estive sempre sozinho. Tenho mau feitio. É muito duro o dia a dia comigo, a trabalhar.

PP - Porque és narcisista...?

BF - Porque não sou natural, as coisas não me saem naturalmente, preciso de trabalhar muito. Preciso de passar por muitos dias sem acontecer nada, até acontecer alguma coisa, e, quando acontece, é sempre uma coisa minúscula que, com muito esforço, se transforma numa coisa maior. E que, depois, com muito mais esforço, se transforma numa canção.

PP - Tudo para ti é resultado de muito trabalho? Não há inspiração, talento?

BF - O trabalho inspira-me muito [risos]. É quando o trabalho começa a atingir um ponto, que começam a sair as coisas, que as coisas começam a rodear-te...

PP - Não és daqueles músicos que está, por exemplo, a comer e se lembra de uma música e, pronto, está feita...

BF - Não sou daqueles que faço canções em meia hora. Desde o momento em que digo “grande melodia” até que começo a escrever uma letra, passa para aí um mês. Mas depois essa melodia inspira-me a letra - ou o contrário. As coisas não me saem assim, não é um talento [risos].

PP - Mas se demoras assim tanto tempo a produzir, como é que lanças trabalhos atrás de trabalhos?

BF - Porque é só o que faço: oito, nove, dez horas por dia. Quando não tinha filhos, ficava 20 horas por dia, não a trabalhar, mas sempre a pensar nisso... Agora, não posso, tenho a atenção dispersa por outras coisas.

PP - Mudou a tua forma de trabalho... E mudou, também, a forma como vês o teu trabalho?

BF - A maneira como vejo a música, pouco.

PP - Vais apresentar as tuas novas músicas no Fusing, em conjunto com as antigas?

BF - Sim, é o que tenho feito. Trata-se de um disco novo, que vai ser lançado assim que puder, com canções que foram feitas já este ano. [O disco foi lançado pós-entrevista]

PP - O B Fachada continua a entrar nas tuas histórias?

BF - Cada vez menos. Só funciona quando se estranha, quando se deixa de estranhar, deixa de se usar.

PP - Eliminaste o B?

BF - Não, foi um equívoco. Eu disse à minha malta que ia começar, de vez em quando, a usar o Fachada como diminutivo e, de repente, as pessoas adotaram isso como ofait diverspreferido.

PP - Disseste numa entrevista que querias cortar com o passado, com o teu LP “Deus, Pátria, Família” (2011)...

BF - Deve ter sido numa entrevista não gravada [risos]. O conceito de música de intervenção, para mim, é gerador de significado. Podes, em duas ou três palavras, levar o ouvinte a enfiar toda uma cassete, que a seguir podes destruir ou acompanhar um pouco, e destruir com mais força ou aproveitá-la para transformá-la noutra coisa. É gerador de significado, é também um recurso estilístico.

PP - Mas, se na história da música, houve canções de intervenção, agora já não há...

BF - Felizmente. O lado moralista da intervenção é o lado que se dispõe mais ao ridículo, por isso é que tem piada usar esse recurso estilístico. Tu sabes que vais ser moralizado, tu ficas à espera de ser moralizado e depois, no fim, isso não acontece.

PP - Mas pode não ser uma moralização, pode ser só um despertar...

BF - Depende, há aqui várias questões, o próprio conceito de intervenção foi quase sempre aplicado a partir do exterior. Muitos poucos músicos gostam de ser apelidados de músicos de intervenção. O Zeca [Afonso] certamente não gostava de ser apelidado de músico de intervenção, e não era um músico de intervenção, de todo. Era um gajo super ligado à génese das canções. As preocupações dele, pessoais e socais, passam para as canções, mas muito raramente ele faz numa canção uma pergunta para a qual já saiba a resposta e isso é uma das coisas fundamentais que, para mim, distingue aquilo que é intervenção pura: quando um cantor faz uma pergunta para a qual já sabe a resposta. Pergunta e responde para despertar as mentes. Isto parece muito desatualizado porque aprendemos no séc. XX que não vale a pena estarmos à espera das grandes verdades e das grandes soluções. Pelo contrário, deveríamos era fazer com que toda a gente percebesse que isso não vai acontecer. Aquela barreira que o Zeca encontrava, quando toda a gente queria que ele tocasse “Os Vampiros”, era uma barreira porque ele tem ali uma canção que percorre dez mil para trás e, provavelmente, 10 mil para a frente, e querer aplicar aquilo, aquela chapa da época, era uma barreira para ele e para quem estava a ouvir. Não estão a aprender aquilo que o próprio cantor está a aprender, a tal resposta que ele não tem. O plano para “Deus, Pátria, Família” era precisamente fazer um disco para adultos. Nunca tinha feito uma canção de 20 minutos para adultos e quis fazer. Veio da necessidade prática de não sentir que estou sempre a fazer a mesma coisa.

PP - Então acreditas que, no fundo, mais vale aceitar que não vamos fazer grandes mudanças? Mais vale sermos felizes, já que não vamos mudar o mundo...?

BF - A música deve ter um papel musical. E não político. Quando tem uma intenção política, o tempo acaba por demonstrar que ela falha em ambas, porque não dá, porque o mundo não ficou melhor.

PP - A tua intenção quando fazes música é fazer uma coisa à Fachada...

BF - É, mas claro que há épocas e épocas. Se calhar, quando fiz o “Deus, Pátria e Família”, nem sequer era tão urgente, como seria hoje, porque é impossível fugir ao assunto social e político. Mesmo que eu não fale disso, estou a falar: “Olha o gajo não está a falar da cena, está a fugir". Hoje em dia, está tudo tão à flor da pele, que não falar disso é falar disso, já nem se põe em causa a questão da intervenção ou da não intervenção, uma pessoa para sobreviver tem obrigatoriamente que expiar isso. Nestes dois últimos anos, a minha geração foi-se toda embora, eu não só perdi os meus amigos, mas também perdi o público. Para mim, tem consequências profissionais 60% da minha geração ter-se ido embora. Não é uma tragédia, os meus amigos foram viver para um sítio melhor, ‘que tragédia!’ [risos], mas é o dia a dia.

Helena Ales Pereira