A Competição Internacional do IndieLisboa abre com o norte-americano "Person to Person" e o francês "Les Garçons Sauvages", enquanto no IndieMusic assiste-se à entrada do "rock" escocês no mapa em "Teenage Superstars" e a fulminante existência das L7 são documentadas em "Pretend We’re Dead". Entre os destaques para o SAPO Mag estão dois filmes da Boca do Inferno – um clássico da Nova Vaga e (mais um) bom filme de "zombies".
O cortejo das transgressões
No dealbar dos 60s, as muitas transgressões das diversas "new waves" atingiam novos patamares. "Funeral Parade of Roses", em 1969, surge no final de uma década pontuada por experiências de nomes famosos no Ocidente como Nagisa Oshima e Shohei Imamura, a espinha dorsal da Nova Vaga japonesa.
Neste filme, no entanto, reunia-se um cocktail explosivo com sexo, drogas, "gore", transsexualidade, incesto, experimentalismos cinemáticos diversos – tudo dentro sob o lema da liberdade total. O responsável pela aventura foi Toshio Matsumoto, falecido no ano passado; quem financiou a aposta foi a Art Theatre Guild, que por essa época e até os anos 80 foi a grande distribuidora das propostas “avant-garde” nipónicas.
Obviamente para tais “desvios” de conduta estilístico/temática não poderia existir algo como um arco narrativo. Um dos fios condutores, ainda assim, é o personagem de Edie (o ator chamado apenas de Pitâ, ou “Peter”, em inglês, que ainda teria continuidade na carreira no cinema e na TV depois do filme), um transsexual que circula pelo escondido circuito homossexual de Tóquio. Tem os favores do dono do lugar onde trabalha, a inimizade de uma rival, enquanto relembra atrocidades passadas e espreita sem saber um terrível "twist" final.
Na esteira do que fazia no mundo ocidental um realizador como Jean-Luc Godard, Matsumoto propõe utilizações singulares/reflexivas sobre velhos recursos da linguagem cinematográfica. Em momentos inesperados, faz cortes abruptos (a cena do chuveiro), trucagens elementares a Meliés, usa o acelerado (muito já se disse sobre a influência sobre “Laranja Mecânica”, com admissões do próprio Kubrick), de entretítulos muito godardianos e experimentações com a montagem sonora.
Para enquadrar este caos aparente, a metalinguística está em toda parte veiculando, seja autoironia, seja declarações de princípios – como quando o realizador de um filme "underground" proclama: "Todas as definições de filmes foram apagadas, todas as portas estão abertas agora". Quanto a autoparódia, outro diálogo: depois de um estudante ter apresentado à audiência um filme "experimental", ele pergunta a um membro da mesma: "Mas o seu corpo deve ter sentido algo da experiência". Resposta: "Sim, mas prefiro drogas verdadeiras".
Este é, aliás, o começo de uma longa sequência guiada unicamente pelo princípio do prazer absoluto: erotismo livre, drogas a rodo, rock’n’roll a embalar como num transe tribal. Há iguarias adicionais: bizarrices sexuais com apoteoses "gores" de Sion Sono ou Takashi Miike aqui com um remoto ancestral – num estranhíssimo quadro edipiano que inclui homicídios e violência gráfica. Os dourados anos 60 brilham na lâmina de Matsumoto Toshio.
Mais um (bom) filme de "zombies"
O conceito desenvolvido por Richard Matheson em "I Am Legend", nos anos 50, estava destinado à uma vida longínqua. Um homem, que pode ser o último na Terra, um cerco que exige uma organização metódica para sobrevivência, e um exterior infestado de criaturas hostis. George Romero aproveitou a ideia e mudou para sempre a história dos filmes de "zombies" em 1968 com "A Noite dos Mortos-Vivos".
Solidão, violência e o fantasma do apocalipse: uma face válida para o glorioso século XXI – que na cinematografia "zombie" arranca a abrir com os mortos-vivos velozes de "28 Dias Depois" e segue alegremente violenta pelos "walking deads" fora.
Dominique Rocher ousou inserir mais um na linhagem, "La Nuit a Dévoré le Monde", mostrando que as realizadoras francesas de filmes de terror chegaram para ficar: no passado, a mesma secção do IndieLisboa exibiu a estreia visceral e imaginativa de Julie Ducornau com "Grave".
Sam (o norueguês Anders Danielsen Lie, de "Oslo 31 de Agosto") desperta já num cenário propício para um cerco – um apartamento – depois um edifício quase inteiro. A lei da selva segundo Rocher implica, felizmente, bastante sangue nas paredes e cenas de ação bem executadas – como demandam hoje em dia os conhecimentos técnicos tornados cada vez mais elementares e uma tecnologia acessível.
Quanto à gestão de tempo, sempre fundamental em histórias minimalistas de sobrevivência, a realizadora percorre esse caminho muitas vezes trilhado com as suas próprias inventices (o toque “Robinson Crusoé” e o sempre imperdível Denis Lavant como o “Wilson” de Sam) e brincadeiras (a piada dos “fãs” a correrem para o concerto do “ídolo”). A despeito do tema, Rocher opta por um cenário ensolarado, onde a música tem um papel importante na sobrevivência mental de Sam – tal como o seu poder de imaginação, responsável por um dos momentos cruciais de revigoração da narrativa perto do fim.
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