Em alturas de desconfinamento, a grande questão lançada no mercado de audiovisual é como voltar a incentivar os espectadores a frequentar as salas?
Como estratégia, há quem reveja a História para extrair lições de como demarcar as salas das propostas do confinamento, sejam elas serviços televisivos, streaming ou tudo o que esteja ao alcance de um dedo. Foi o que fez a Leopardo Filmes / Medeia Filmes, gerida pelo produtor Paulo Branco, e a solução a que se chegou chama-se "roman porno".
O termo nasceu do crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger, referindo a um nova abordagem produtiva dos estúdios Nikkatsu, um dos mais antigos do Japão (produziu filmes de todo o género desde 1912), virada para o “porno romântico”.
Com a queda abrupta da afluência de público às salas, no início da década de 1970, que levou a uma decadência na indústria nipónica frente à cada vez mais abrangente televisão, o estúdio, que também enfrentava uma iminente falência, radicalizou-se e criou um novo esquema produtivo, que passava por invocar sexo “semiexplícito” em filmes de baixo-orçamento e de duração que não ultrapassasse a hora e meia (para que fosse exibido em "sessões duplas").
Na altura, o Japão estava dominado por uma forte censura, o que condicionava a própria ideia de sexo no grande ecrã, sendo explicitamente proibida a exibição de qualquer órgão genital. Isto levou os realizadores a exercitar a sua engenhosidade criativa para não acanhar as imagens lascivas.
Durante este período, vários nomes surgiam nestas “páginas” de erotismo transgressivo, passando por Masaru Konuma, Noburu Tanaka, Toshiharu Ikeda ou Tatsumi Kumashiro. Respondendo aos pedidos da produtora, eles preenchiam estes ensaios com evidentes referências e presunções cinematográficas, ao mesmo tempo em que focavam diversos temas tabus ou de cariz político-social.
Não fiquemos no equívoco de encarar estas obras como somente pornografia: o “roman porno” alcançou mundialmente uma conotação artística que os separava dos contemporâneos “pink films” (as produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo oriundas de pequenos estúdios independentes, normalmente de consumo interior), resgatando uma produtora veterana na “cruel” mudança dos tempos.
O impacto foi tal que, em 2016, para celebrar o 45º aniversário do “porno romântico” dos estúdios Nikkatsu, cinco realizadores modernos foram desafiados a replicar os moldes aplicados nesses tempos áureos, e o resultado foram obras marcadas por diferentes abordagens e transposições do estilo até então estabelecido.
Voltando agora aos estratagemas de apelo ao público “confinado”, a proposta da Leopardo Filmes / Medeia Filmes é a de seduzir com as mesmas armas dos estúdios Nikkatsu, apresentando um ciclo especial no Cinema Nimas, em Lisboa, sobre este género salvador-da-pátria e obcecado pelas tentações do corpo.
Serão no total dez obras (cinco clássicos e cinco modernos). A primeira sessão será composta por "A Senhora Karuizawa" (dia 18 e 21 às 19h00, dia 23 às 21h30) e "O Lírio Branco" (dia 20 às 19h00 e dia 22 às 21h30).
"A Senhora Karuizawa": o verão chega-nos quente e húmido
Já no arrefecimento da carnalidade do “roman porno”, nos primeiros anos da década de 1980, surgiu-o "A Senhora Karuizawa" (Karuizawa fujin, 1982), que adapta livremente o romance de Stendhal “O Vermelho e o Negro", contextualizando com as desigualdades sociais nas terras do Sol Nascente.
Este romance erotizado centra-se na chegada de um jovem estudante pobre, Junichi (Takayuki Godai), à região de Karuizawa, local escolhido pelos afortunados como estância de férias, para trabalhar num serviço de "catering" de um restaurante da área. Após um acidente na mansão de uma das importantes famílias de Karuizawa, Junichi é despedido, mas acaba contratado por Keiko (Miwa Takada), a matriarca da tal família, como tutor do filho de cinco anos. Durante o serviço, ambos aproximam-se, afetiva e carnalmente, consumando o desejo nesses tempos quentes quase animalescos.
Dirigido por Masaru Konuma, este é, notavelmente, um filme sobre o desejo impregnado como força animal. Diga-se que a própria construção visual é deveras alusiva a essa bestialidade interiorizada, sendo que a fauna e flora assume um papel fundamental nos registos de passagem e transformação das personagens, assim como as suas mais profundas fantasias.
Veja-se por exemplo o canto dos animais noturnos como “vozes de aprovação” ao magnetismo sexual do par, com Keiko tentando resistir à mais perdida tentação (“Não me obrigue a despi-lo”). Esse apetite sexualizado é também rompido pelo onirismo de uma dendrofilia confessada pela protagonista aos espectadores, estendendo a ideia de um perverso apetite não apenas facultado pelo corpo de Junichi, mas de todo este lugar Karuizawa sob o sol escaldante e o cantar das cigarras em pleno verão (“Os invernos são rigorosos em Karuizawa, mas... o verão sempre volta!”).
O trabalho de Masaru Konuma persegue o calor dessa mulher à espera de ser libertada das amarras matrimoniais, tentando escapar do sexo bruto quase violatório por parte do autoritário marido para correr para os braços do jovem amante, onde o contato entre corpos é um ópio incorporado.
A grande infelicidade de "A Senhora Karuizawa" está na (não) coesão do argumento, que não passa aqui de um dispositivo para embarcar nesta jornada sexual e do retrato algo sádico da diferença entre classes, da subjugação dos mais baixos sob os aristocratas e da emancipação da mulher para fora do mero símbolo de estatuto social.
«O Lírio Branco»: o perpétuo desejo do poder
Hideo Nakata foi um dos grandes impulsores do chamado "j-horror", um esquema de filmes de terror que conquistaram o Ocidente (tendo sido brindados com a variedade de "remakes", "reboots "e refilmagens em Hollywood).
Da sua filmografia contam-se obras como “Ringu” (que originou o sucesso “The Ring – O Aviso” nos EUA) e “Águas Passadas”, mas antes dessas aventuras por espectros e maldições correntes, Nakata foi assistente de realização de Masaru Konuma, o que lhe garantiu legitimidade para invocar os seus gestos de sugestão e fabulação sexual durante a homenagem dos 45 anos.
“O Lírio Branco” (“Howaito rirî”, 2016) é uma fantasia lésbica vigorosa no elo entre mestre e pupilo, neste caso de uma artesã e professora de olearia com a sua subserviente aluna/amante precária. Uma relação equilibrada entre o desejo e a necessidade que será abalada com a vinda de um terceiro elemento e um triângulo amoroso que se acerca e se estatela em territórios psicológicos e obsessivos.
Hideo Nakata comete a vénia da suscitação através de um embelezamento apropriado nas sequências sexuais entre as duas mulheres, tentando equiparar com isto o espírito proposto do legado “roman porno” dos estúdios Nikkatsu. As brancas flores dos lírios adquirem aqui um segundo sentido, um atalho visual que faz contornar o puro explícito, enquanto o barro moldado e os constantes focos nos dedos em plena operação atribuem um senso erotizado e afrodisíaco que inspira não só o ato sexualizado em si, mas também a moldagem desta relação perante a sua “oleira”.
Nakata consegue um trabalho saudosista e referencial, mas infelizmente cai como prosa numa teoria metaforizada, e como tal, em modo castração, impedindo-o de transgredir para territórios próprios e ainda mais perversos. Em comparação com “A Senhora Karuizawa”, onde o sexo é quase uma imposição mística e quente como o verão que cita constantemente, em “Os Lírios Brancos” o contacto entre corpos é agressivo, animalesco e em recorrente conflito para estabelecer um domínio.
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