Quando Martin Scorsese diz que Orson Welles abriu a caixa de Pandora do cinema, fá-lo com uma manifesta admiração no olhar. Essa reverência é partilhada entre os seus pares. É que, em 1941, “O Mundo a seus Pés” inaugurou uma nova era e fê-lo de forma tão perfeita quanto definitiva. Em causa estavam a forma e o conteúdo daquele filme, embrulhados no olhar revolucionário de um jovem génio e entregue aos espectadores através daquela que se tornou a sua obra-prima.

A história conta-se em poucas linhas e não é, diga-se, particularmente original ou mirabolante. “O Mundo a seus Pés” arranca com uma placa que avisa que a passagem é proibida. Ao fundo, um casarão tem uma única janela iluminada. Sequências de planos aproximam-nos dessa janela. Lá dentro, Charles Foster Kane (Welles realiza e protagoniza) está prostrado no seu leito de morte. Tem na mão um daqueles globos com neve falsa suspensa em água. Ao pronunciar a sua última palavra, o globo rola da mão e parte-se ao chegar ao chão. No vidro, vemos refletida a imagem de uma emprega, que corre ao quarto.

O enredo começa a desenrolar-se a partir do fim. Jornalistas do The Inquirer debatem sobre a vida e obra daquele homem tão importante, que acaba de morrer. A um deles, Mr. Thompson (William Alland), é confiada a missão de contactar os que foram mais próximos de Kane, para tentar encontrar o significado do que disse com o último suspiro. Em flashback, ficamos a conhecer os momentos que essas personagens descrevem.

Mr. Berstein (Everett Sloane), um empresário dos media, conta como Kane fundou o seu império de jornais, ao comprar o The Inquirer. Descreve a personalidade forte daquela figura em ascensão e a sede que tinha de distanciar-se da família adotiva privilegiada, construindo a sua própria fortuna e colocando-a ao serviço de um objetivo nobre.

Jedediah Leland (Joseph Cotten), que fora um amigo fiel de Kane até ao dia em que deixaram de se falar, é agora um velho errático numa casa de repouso. Das suas memórias consegue repescar episódios que descrevem o protagonista numa fase já avançada da sua vida, em que se encontra sozinho. É sozinho que o vemos morrer.

Susan Alexander (Dorothy Comingore), a segunda esposa de Kane, aparece naquele presente como uma pessoa amarga que perdeu tudo. Recorda como conheceu o marido, por um mero acaso, como a relação levou ao fim do primeiro casamento de Charles e a obsessão dele em realizar o sonho dela: ser cantora de ópera. Charles Foster Kane era tão rico que até construiu uma ópera onde a esposa não precisava de passar em testes alheios para se estrear. Só que a estreia chega e, embora o filme não seja claro neste ponto, Susan parece ser um fracasso. Jedediah começa a escrever uma crítica negativa ao desempenho de Susan, a publicar no jornal, quando Charles o encontra desfalecido, bêbado, sobre a máquina de escrever, decidindo então terminar ele mesmo o texto e mantendo a ideia original do amigo. É este episódio que despoleta o fim da proximidade entre os dois. E é aquela obsessão com o sucesso da esposa que, ao adensar-se com o passar dos anos, destrói a relação do casal e faz com que Susan abandone Charlie.

No final do filme, Thompson diz aos colegas que não são as últimas palavras que definem uma pessoa. O subtexto é bastante claro: o jornalista foi conhecendo aqueles que estiveram na vida de Charles Foster Kane, na expectativa de que algum deles pudesse explicar o mistério da última palavra daquele homem. A missão foi frustrada mas o espectador apercebe-se do que aconteceu verdadeiramente.

Ao ouvir os fantasmas do passado, o jornalista conheceu a história do magnata dos media. Mas será que chegou a conhecê-lo realmente? O aviso inicial diz-nos de imediato que somos intrusos nesta história, que temos uma barreira a separar-nos da personagem principal. Essa barreira também a sentem Berstein, Jedediah e Susan, porque os seus relatos convergem na descrição de uma pessoa que caminhou sempre sozinha. Falam de alguém que encerra uma tormenta, mais do que um segredo, que não ousa confessar a ninguém, talvez nem a si mesmo – exceto no leito de morte.

Enquanto a história é um mistério – bem executado, mas simples – a narrativa não linear dá-lhe cor e textura. Aqueles relatos lançam um olhar para o passado e, a cada nova cena, adensa-se a curiosidade sobre o protagonista, tão admirado e tão solitário. E também isto era quase inédito no cinema da altura.

A revolução da ignorância

Importa confessar que “O Mundo a seus Pés” deixa algo a desejar, à primeira vista. Não é imediato o valor deste filme, nem mesmo sabendo que é escolhido muitas vezes como um dos melhores de sempre. Mas também isso faz parte da mestria.

A admiração por Orson Welles cresce nas pessoas quando sabem que a obra-prima do realizador foi feita tinha ele apenas 25 anos. Mais ainda quando se diz que os estúdios lhe deram total liberdade criativa, uma raridade à época. O interesse cresce mais um pouco quando se fala do cinema de então: na fronteira dos filmes mudos, Welles rasga convenções e ousa fazer um filme diferente de tudo o que existia e, como se provou e continua a verificar, influenciou tanto o cinema dos nossos dias. Mas não é só: o realizador devia muita da sua experiência, à época, à sua companhia de teatro, Mercury Theatre, levando mesmo alguns dos actores que a ela pertenciam para o grande ecrã.

Talvez tenha sido essa combinação de fatores únicos que faz de “O Mundo a seus Pés” um filme tão perfeito. Escolher as companhias certas também terá ajudado: Herman J. Mankiewicz ajudou no guião; Bernard Herrmann tratou da música (ele que viria a figurar nos créditos de Psycho e Taxi Driver); e Gregg Toland, na cinematografia.

Sob a direcção de Orson Welles, esta equipa conseguiu fazer planos que parecem pinturas. é brilhante a forma como utilizam a luz para dar dramatismo às primeiras cenas, quando os jornalistas começaram a puxar o novelo da história de Kane, por exemplo, entre as sombras da biblioteca.

Surpreende também o uso da perspetiva e uma das cenas em que ele é mais evidente encontra-se no início do filme. Charles é um rapaz pequeno, que brinca na neve com o seu trenó, até que os pais lhe dizem que será levado por um estranho, para estudar e ter oportunidades melhores na vida. Quando o acordo é negociado, dentro de casa, há uma janela ao centro do plano por onde se vê o pequeno Charles, sempre nítido como se daí devêssemos extrair a sua omnipresença.

O choque abate-se sobre Charles e não sentimos sequer empatia para com os pais, que fazem aquele sacrifício, porque uma parte da nossa atenção está sempre com a criança que brinca na neve. Por muito subtil que essa técnica seja, o efeito sente-se inconscientemente na primeira leitura do filme, a que se fica pelo conteúdo e é alheia à forma. Já não passa tão despercebida a cena em que Charles se afasta do primeiro plano, caminhando na direção de uma janela e diminuindo em relação a ela como se estivesse bastante mais longe das outras personagens. Um jogo claro de perspetiva que se repete quando Charles Foster Kane, já perto dos seus últimos anos, está no casarão repleto de estátuas e outras obras de arte, que colecionou ao longo da vida. Os tectos enormes diminuem a personagem, à medida que também ela se distancia e fica cada vez mais isolada. Kane chega a parecer muito pequeno junto àquela lareira descomunal, como se ela fosse capaz de engolir o protagonista.

Os planos que o realizador escolheu são outro dos motivos da magia deste filme. Os ângulos oscilam ao longo da história e na monumental cena de um comício político – quando Charles tenta enveredar pela carreira política – vemo-lo num ângulo tão baixo que a produção cravou buracos no chão para aumentar aquele efeito.

O que hoje é resolvido rapidamente com cortes, na sala de edição, foi feito aqui de forma artesanal. Em vez de dois planos para nos aproximarmos da cara de uma personagem, a câmara rola até ela para o close-up.

Em entrevista, Orson Welles terá dito que o que fez de “O Mundo a seus Pés” um filme de sucesso foi a sua ignorância, por estar a estrear-se na realização sem saber o que era suposto fazer-se em cinema, o que podia mudar ou onde era possível inovar. É verdade que a expectativa pode ser ruinosa para qualquer projeto, mas também é preciso lembrar que “O Mundo a seus Pés” não recebeu aplausos logo à partida.

A história do filme aproxima-se da do magnata americano William Randolph Hearst. Coincidentemente, também Hearst foi um empresário dos media, construindo o seu próprio império de jornais, enveredando pela política a dada altura, casando com uma cantora... As coincidências eram, de facto, muitas e a influência de Hearst levou a um boicote ao filme de Welles, que, só mais tarde, em reposições, seria objeto de apreço do público.

Apreço e obsessão. O mistério de “O Mundo a seus Pés” tornou-se uma questão de culto nos meandros do cinema e as teorias multiplicam-se porque o filme acaba por não responder à pergunta de partida: o que significa a última palavra daquele homem, que passou toda a vida a tentar superar-se para cativar o afeto de outros, incapaz, contudo, de se aproximar dos que o rodeiam?

Rosebud.

Quando ninguém consegue decifrar o mistério, os jornalistas visitam o casarão de Kane. Entre velharias e relíquias, tecem aquela conclusão: as últimas palavras não definem a vida de uma pessoa.

O último plano sacia-nos a curiosidade, mas não responde ao enigma: um empregado da casa atira para a fogueira um trenó, onde se vê desenhada uma rosa e uma inscrição.

Rosebud.

A resposta parece demasiado óbvia. A última palavra não define uma pessoa, mas, para Charles Foster Kane, foi a última manifestação do que procurou sempre: recuperar a infância perdida.

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