Valada despertou com esforço no segundo dia de festival, 13 de setembro. Quando a cabeça não tem juízo e a audição de música atinge a overdose, o corpo é que paga, tendo sido visível o cansaço espelhado na cara dos festivaleiros. Curiosamente, essa moleza indolente parece ter afetado o próprio festival, já que houve um atraso que alterou a hora de todos os concertos. Desconhecemos os motivos, que devem ter sido legítimos, para o percalço, mas o interregno de meia hora provocou mossa e numa organização com tantos concertos encadeados era um acidente que estava à espera de acontecer.
Um início indolente
Não obstante, os espetáculos seguiram-se, e até mesmo os nomes escolhidos para o início da tarde pareceram espelhar a necessidade de descanso dos presentes. Tendo falhado as prestações iniciais (o almoço é soberano), vimos os Sonic Jesus a dar um concerto no Rio à imagem daquilo que pareceu ser o intuito do Reverence: um concerto de cores ácidas, envolvente e intenso quanto baste, mas também possível de ser desfrutado por quem se encontre sentado na relva.
Do outro lado, apesar de algum hype por conter elementos de várias bandas nacionais de algum relevo, os Keep Razors Sharp não respeitaram a sua designação e mais pareceram uma faca para barrar manteiga. Mesmo revelando pormenores interessantes, pareceu faltar sal ao grupo, que não conseguiu manter o nosso interesse durante muito tempo. Tendo perdido o concerto dos Dreamweapon devido às sobreposições causadas pelo atraso, apenas chegámos a tempo dos Air Formation, que manteve o registo lânguido. O próprio vocalista admitiu-o quando disse que o shoegaze da banda era “para as ressacas”. De resto, não se destacou muito, meramente competente.
As más-línguas diziam perto do Sabotage que o vocalista dos Exit Calm cantava como um Bono 2.0. Porém, as semelhanças com os U2 não se ficam por aí, já que ambos os grupos tocam um rock alternativo pouco entusiasmante (a fase tardia no caso dos irlandeses, calma).
Voltámos ao Rio para assistir a um dos concertos da tarde. Os Mugstar, liderados pelo frenético Pete Smyth, seguiram o mesmo rumo que os Cave tomaram no dia anterior, ou seja, krautrock muito interessante, quase instrumental (quase, porque Smyth ia mandando uns berros enquanto fazia caretas), mas com uma forte e refrescante presença de teclados. Apesar de às vezes parecer que a banda caía em fora de tempo, foi uma excelente prestação, pontificada pelo elevado número de pessoas que os estavam a ver.
Apanhámos já os The Quartet of Woah! a meio de “The Announcer”, mantendo a energia em altas. Em cerca de 30 minutos que souberam a pouco, os lisboetas deram uma prestação no Sabotage como se tivessem no palco Reverence, tamanha a dedicação e energia. O som continuou deficitário, mas as teclas de Rui Guerra foram pelo menos audíveis ao longo do concerto, onde figuraram “Empty Stream”, a nova “Backwardsfirstliners”, a bela “The Path to Our Commitment” e o deflagrar de rock and roll denominado por “U-Turn”.
No Rio, os Asimov, duo de barba rija composto por Carlos Ferreira na guitarra e voz e por João Arsénio na bateria, mostrou que não é preciso muita coisa para fazer estardalhaço. Em versão “Heavy Psych Rock”, os Asimov, que de robóticos não têm nada, tiveram muita gente para os ver a tocar canções como “On Through the Night”.
Um dos concertos que mais prometia, o dos Bardo Pond, cumpriu a expectativa em parte. A dinâmica da banda, algures entre o drone e o rock psicadélico, assenta entre a voz de sereia grega de Isobel Sollenberger e o espesso volume sonoro imanente das guitarras de Michael e John Gibbons. A experiência foi intoxicante, pecando apenas por, por vezes, a voz e as trémulas vibrações vindas da flauta transversal serem engolidas pelo negrume circundante.
No Sabotage, assistiríamos a um bailarico proporcionado por Bruto and the Cannibals, projeto paralelo do lendário e idiossincrático Jorge Bruto. Com um punk a resvalar para o psychobilly, o grupo entreteve as hostes com temas como “I Know You’re Mine”, “Wild World” e “Sluts From Hell”, tocadas ao dobro da velocidade, sendo Jorge Bruto um espetáculo dentro do espetáculo. O vocalista gesticulou, atirou-se para o chão, posou para fotos e esteve tão acelerado que não se percebeu nada do que dizia, mesmo entre canções.
A fechar a tarde junto ao Rio, os Christian Bland & The Revelators mostraram ser um projeto legítimo e não apenas um devaneio do guitarrista dos The Black Angels, aqui também a assumir o papel de vocalista. Se as canções dos B.A são viagens pelo deserto, estes The Revelators são as alucinações provocadas pela desidratação (ou por drogas, como uns festivaleiros da velha guarda que estavam a passar um mau bocado, deitados no chão), evocando paisagens fantasmagóricas algures no Texas.
Celebração caleidoscópica
Com o concerto de Christian Bland a acabar mais tarde do que era suposto, não conseguimos ver grande parte dos A Place to Bury Strangers. Apesar de os concertos não coincidirem exactamente, a necessidade de jantar prevaleceu, mas ainda chegámos a tempo de ver Oliver Ackermann e Dion Lunadon a arremessarem selvaticamente os seus instrumentos no final de “Deadbeat” [o autor desta peça admite que foi um lapso seu não se ter ido nutrir mais cedo, pelo que fica um pedido de desculpas aos leitores]. Contudo, quem lá esteve, afirma a pés juntos que foi uma das melhores prestações do festival. As bifanas também estavam boas.
Já refeitos, podemos apreciar a segunda vinda dos Psychic TV ao Ribatejo depois de terem integrado as Cartaxo Sessions em abril do ano passado. Segundo consta, o alinhamento não diferiu muito, centrando-se numa celebração do rock psicadélico desdobrada em várias covers. A espiral multicolor projetada num ecrã gigante deu as boas vindas à figura inconfundível de Genesis P-Orridge e quejandos, que embarcaram numa viagem encetada por Interstellar Overdrive, com as letras de Astronomy Domine, dois clássicos dos Pink Floyd de outrora.
Tendo dado azo a algumas jams de caráter experimental e arranjos sumptuosos, o seu concerto foi, porém, até algo ortodoxo, seguindo os lugares comuns do rock clássico, como no incentivo aos “oohs” e ao bater de palmas”, o que criou uma aproximação desejável com a audiência. Os Psychic TV, que sempre tiveram uma queda para o discurso sociopolítico, encerraram o concerto com “Greyhounds of the Future”, tema de críticas incisivas e mantras a seguir.
Um soundcheck mais longo que o esperado estava a deixar os fãs em pulgas (especialmente aqueles que foram buscar os Tie-dyes ao fundo do armário), mas os Hawkwind finalmente subiram ao palco, marcando a estreia desta entidade do space rock em solo nacional ao fim de 40 anos de existência. Apresentando uma vitalidade assinalável, os Hawkwind fizeram uma viagem pela sua longa carreira, recuperando músicas como You'd Better Believe It e Assault and Battery, de álbuns fundacionais do rock progressivo e psicadélico, mas também explorando o catálogo mais recente, incluindo a faixa Seasons, do mais recente álbum de 2012.
Tudo neste concerto foi um sonho molhado para os saudosistas, desde os sons sci-fi do theramin, manejado com mestria por Tim Blake, até às projeções totalmente kitsch e paradas no tempo, passando pelas introduções dramáticas do vocalista Mr Dibs. No que toca à performance instrumental, a banda tocou nas horas, com um Dave Brock tão mago na guitarra como antes, o que também fez realçar a qualidade das canções (onde “Silver Machine”, para tristeza de muitos, não figurou. A terminar esta vinda gloriosa, os ingleses tocaram Hassan-i Sabbah, de melodia e temática médio-oriental, que, apesar de mencionar Hashish como referência aos Assassinos medievais, a maior parte das pessoas ficou a cantarolar a dita palavra com narcóticos em mente.
Houve apenas uma banda portuguesa a subir ao palco Reverence e, como não podia deixar de ser, foram os Mão Morta a ter essa honra. O conjunto dispensa apresentações, tamanha a história e ligação à música alternativa portuguesa. Aos clássicos que habitualmente figuram nas performances do sexteto bracarense juntaram-se as novas músicas do “Pelo Meu Relógio São Horas de Matar”. Concebidos nesta era decadente, estes temas ressoaram especialmente com o público pela forma como pintam o cenário horrível que é a atual condição portuguesa, tendo à cabeça, por exemplo, a desolação flagelante de um “Hipótese de Suicídio” ou a triste metáfora contida nas asas de “Pássaros a Esvoaçar”.
A dupla “Até Cair” e “E se Depois” abriram as portas para que os trovadores da desgraça entrassem, com um Adolfo Luxúria Canibal a dançar daquela forma característica, como se estivesse possuído por São Vito. Bem equalizado mas com o som baixo, algo que Adolfo fez questão de referir e pedir que se aumentassem os decibéis, o concerto dos Mão Morta foi a crise neurótica a que nos habituaram (num bom sentido). Os Mão Morta percorreram as arcadas sinuosas de “Barcelona” com as mãos ensanguentadas, trazidas de “Berlim” e deram a conhecer as sórdidas personalidades de “Charles Manson” e “Anarquista Duval” para depois quererem “Fazer de Morto”. Quando a sua prestação já estava a chegar ao fim, decidiram que eram “Horas de Matar” e, de canto fúnebre e letra provocatória, encerraram mais um grande concerto.
Fechando o palco Reverence em beleza, os Black Angels trouxeram o seu som rock psicadélico, revivalista dos 60s, mas atualizado para o século XXI. Focados sobretudo no material dos últimos dois álbuns, “Indigo Meadow” e “Phosphene Dream”, estes anjos obscuros começaram, no entanto, com “Snake In The Grass”, canção sibilante, a relembrar os momentos mais exploratórios dos The Doors. Enquanto as projeções nos hipnotizavam com a sua fluidez quase líquida, os Black Angels aproveitaram a nossa distração para entrarem diretamente na nossa cabeça por intermédio de faixas encantatórias como “Yellow Elevator#2”, onde o órgão tem tanto de orelhudo como ameaçador, “Evil Things”, de pegada poderosa e riff incisivo, e “Indigo Meadow”, cujo refrão vai se tornando cada vez mais paranóico e urgente. A encerrar, o vocalista Alex Maas ficou sozinho no palco e quando o seu canto lamuriante cessou, foi sinal de que outros palcos nos esperavam.
A euforia da reta final
Os Crippled Black Phoenix, no Rio, assinaram um dos mais belos momentos da noite. Num concerto de sonoridade cheia e requintada (o som não falhou perante o septeto), onde o poder das guitarras esteve harmoniosamente ligado à delicadeza dos teclados e do piano, o grupo nascido da mente de Justin Greaves teve uma performance poderosa e emotiva em partes iguais. Todo o concerto foi de elevado calibre, havendo, contudo, um momento que se destacou: quando as vozes de Daniel Änghede e Daisy Chapman se calaram para deixar o público cantarolar a melodia de “Burnt Reynolds”, tendo depois Änghede cantado por cima da teia de vozes criada pela audiência. É um daqueles momentos únicos que ficaram marcados no coração dos participantes e (mais um) que tornou o Reverence numa experiência única. Devido aos atrasos, o seu concerto teve de acabar mais cedo, sendo imperativo que voltem em nome próprio. Por fim, uma versão rockeira de “Bella Chao”, virtuoso hino de rebeldia, que incluiu a universal tirada de “O povo unido jamais será vencido”.
Com a passagem das horas, foi cada vez mais complicado acompanhar os concertos que se seguiriam. Ainda demos um salto para ver Moon Duo no Sabotage, que segundo um rumor que correu durante a noite, supostamente teria cancelado a sua vinda. Nada disso, já que Sanae Yamada e Ripley Johnson, encobertos pelas imagens projetadas sobre todo o palco, mantiveram os espíritos em transe com a sua fórmula de rock hipnótico. Durante a noite tocaram ainda os 10 000 Russos, The Oscillation, Equations e White Manna. Como foi referido no texto anterior, Jibóia marcou o fim de forma apoteótica, fechado esta edição do Reverence Valada. Saúda-se a iniciativa e o esforço destes valentes que pegaram o boi pelos cornos e criaram um novo festival, mas, acima de tudo, o que se quer é que haja mais para o ano.
Fotos @Rita Sousa Vieira
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