A HISTÓRIA: Stéphane, acabado de chegar de Cherbourg, vai integrar a Brigada Anti-Crime (BAC) de Montfermeil, nos arredores de Paris. É aí que conhece os seus novos colegas de equipa, Chris e Gwada, dois agentes experientes. Não tarda a descobrir as tensões entre os diferentes gangues locais. Durante uma detenção, um drone filma todos os seus actos e gestos...


“Não é como você cai que importa, é como você pousa”

Passaram 24 anos desde “La Haine: O Ódio”, o drama de bairro francês que embebedou da sua marginalidade para nos transmitir, por fim, as vozes dos silenciados.

Falamos de uma ebulição social e racial que culmina nas periferias de Paris, onde os “franceses” são de segunda categoria, citando os privilegiados do centro, e lidam diariamente com um cerco que somente eles conhecem.

Ao som de um remixado ‎”Non, je ne regrette rien” (Edith Piaf), “O Ódio” demarcou-se dos filmes americanos sobre violência citadina que dominavam os cinemas, devido à sua ambiguidade, ou à sua ausência de moralismos vencidos, e pela denúncia da brutalidade policial que muito do cinema de Hollywood encarava como heroísmo vigilante.

Foi aqui que o realizador Mathieu Kassovitz conseguiu a sua grande proeza, o seu “preto-e-branco” farsante que corroeria a cerne de um cinema francês feito de aparências e de ensaios de intelectualidade.

Há muito de consanguinidade entre “O Ódio” e neste “Os Miseráveis”, a modernização do mais que célebre livro de Victor Hugo.

Nas mãos do realizador Ladj Ly é uma releitura das velhas questões trazidas à luz pelos ecos da nossa contemporaneidade. É um “conto” de polícias e criminosos, vigilantes e traiçoeiros, onde nenhum papel é evidentemente atribuído. Mais do que tudo, a ambiguidade reina na construção deste ecossistema à margem desses tais “franceses de primeira”, apenas acedido por via férrea.

E já que falamos na categorização entre primeiros e segundos, basta olhar para a abertura, a vitória da seleção francesa no Mundial de 2018 e a união entre todos com as suas bandeirinhas, gestos assertivos de festejo e uma felicidade que não parece terminar.

Para comemorar o título, "franceses de primeira" e "de segunda" tornam-se um só, uma utopia que não presta atenção à origem nem a tons de pele. Mas o dia termina e a ação transfere-se para os becos e os arranha-céus sobrelotados, para os meninos que crescem na violência e só esta conhecem, bem como a discriminação que habita no coração de todos como um instinto de sobrevivência.

Mas vai ao engano quem julga que "Os Miseráveis" é apenas um panfleto de inclusão social ou de representatividade. O que se vê é também um portento técnico e narrativo, onde uma montagem incansável lhe dá um ritmo frenético, digno de um guerrilheiro pronto a executar a sua missão. É um autêntico “estrondo”, impulsivo e explosivo, quer na ação, quer na interação entre as personagens.

Mais do que tudo, o realizador Ladj Ly prova o seu conhecimento, a sua vivência e a sua humanidade. A sua sede por um cinema de sangue na guelra, imparcial e, ao mesmo tempo, que denuncia sem ser ideologicamente agressivo ou ter alicerces nas tendências do "cinema verité" [cinema-verdade].

Por enquanto, e não vamos com isso menorizar, “Os Miseráveis” é a joia da coroa da Kourtrajmé, o coletivo artístico que Ly integra e encontra inspiração no clássico “La Haine”. O que nos diz é que os fantasmas da violência contra os “franceses de segunda” e a negligência social agitados por Kassovitz em 1995 continuam pelos arredores de Paris.

Ainda é cedo, mas já temos aqui um dos grandes filmes do ano...

"Os Miseráveis": nos cinemas a 20 de fevereiro.

Crítica: Hugo Gomes