A HISTÓRIA: Anthony tem 81 anos e mora sozinho no seu apartamento em Londres, rejeitando todas as enfermeiras que a sua filha Anne tenta impor-lhe. Porém, esse apoio torna-se cada vez mais urgente para ela, pois vai deixar de poder visitá-lo todos os dias -decidiu mudar-se para Paris para viver com um homem que acabou de conhecer...

Mas se isso é verdade, quem é o estranho que irrompe pela sala de Anthony, afirmando ser casado com Anne há mais de dez anos? E porque diz tão convictamente que estão na casa do casal e não no apartamento de Anthony? E ela não tinha decidido ir viver para Paris? Estará Anthony a perder o juízo? Parece que o mundo, por instantes, deixou de ter lógica.

"O Pai": nos cinemas a 6 de maio. Vencedor dos Óscares de Melhor Ator e Argumento Adaptado.


Crítica: Hugo Gomes

No seu (alegado) apartamento – o "my flat", que declara continuamente – Anthony (Anthony Hopkins) perde constantemente o seu relógio de pulso, mas reforçamos aqui que não lhe faz falta. O tempo não parou em "O Pai", apenas se diluiu, perdeu-se algures no seu eixo, delirante e desapaixonado, vago até se tornar torturante.

Nesta primeira realização de Florian Zeller, dramaturgo francês que adapta e readapta a sua peça (que passou em Portugal no Teatro Aberto em 2016, protagonizada por João Perry), somos “puxados” contra a nossa vontade para um labirinto em vias do desmoronamento - a mente de Anthony - de um ancião preso à (não) realidade em que a sua existência converteu, caminhando a passos largos para o fim. A demência toma conta do enredo e é esse o propósito e a sua materializada lupa: um simulacro da experiência de decadência do protagonista, enganado pelas suas próprias capacidades.

Em “O Pai” entramos no apartamento, e no interior (e interiores) lá permanecemos, enclausurados numa prisão invisível, por entre portas fechadas, entreabertas e escancaradas, por sucessivos "déjà vu", pelas caras familiares que se metamorfoseiam em perfeitos desconhecidos, e pelo destino que nos liga à triste conclusão. Inspirado na vivência da sua avó, Zeller emana uma história inglória sobre a queda livre de um homem, quiçá “grandioso”, e condena-o a uma cruel sentença – a da permanente ilusão.

O filme faz uso do interior cénico para torcer uma realidade aparentemente gratificante. A edição (“montagem” para os mais puristas), aqui ao serviço desse motor experiencial e narrativo, faz o resto, confundindo o espectador da mesma maneira que coloca o seu protagonista em xeque (convém sublinhar a autoria de Yorgos Lamprinos na edição, que também esteve por detrás de “Custódia Partilhada”, de Xavier Legrand).

Nos protagonismos, não poderíamos esquecer a importante roda deste veículo - Anthony Hopkins - um ator com a capacidade de nos adocicar e repentinamente nos intimidar, assumindo a capa da negação pelo seu próprio estado. Como alicerce à sua monstruosa presença e interpretação, contamos ainda com uma Olivia Colman a exibir fragilidades inquietantes ou uma “desaparecida” Olivia Williams a estabelecer a sua dignidade, enquanto pelo meio (não menos importante), Imogen Poots surge a responder-nos como um anjo do tormento.

Sim, “O Pai” mantém o seu vínculo teatral. É um filme de atores, um palco para estes brilharem, enquanto os aprisiona a um cativeiro motivado pela arte fingida do cinema (mais uma vez, reforçando a ideia da edição como parte integral deste relato).

Para muitos, esta história de velhice a aguardar o seu “final feliz” traz à memória “Amor”, de Michael Haneke (2012), nem que seja pela relação das personagens com o seu espaço e o tempo estagnado. Mas enquanto um se motiva no “não-dito” e no “invisível”, “O Pai” reafirma a sua ostentação e a sonoridade (a tempestuosidade da ópera de “Les Pêcheurs de Perles”) que acrescenta camadas alegóricas às paredes deste cárcere. O tempo, simplesmente, não funciona aqui.