Depois do sucesso conseguido em Cannes e, mais recentemente, em Sydney (onde venceu o grande prémio), "As Mil e Uma Noites" chegou finalmente a Portugal, com uma antestreia nacional no Festival de Curtas de Vila do Conde.

Com uma duração aproximada de seis horas, divididas por três volumes ("O Inquieto", "O Desolado" e "O Encantado"), o filme não parece contudo ter assustado o público do certame. Pelo contrário, desde muito cedo que à porta do Teatro Municipal se juntaram várias centenas de pessoas à espera de conseguir o seu bilhete. Por isso, quando o realizador subiu ao palco, levando consigo dezenas de atores, técnicos e colaboradores, esperava-o uma plateia repleta e visivelmente entusiasmada.

Para Miguel Gomes, como para a maioria de nós, habituados à indiferença que infelizmente permeia a relação entre o público português e o cinema nacional, este deve ter sido um momento especial. Até porque, como ele fez questão de lembrar, “este é um filme que tem uma relação muito estreita com o país”.

Talvez se pudesse dizer o mesmo de todos os filmes de Miguel Gomes, mas é verdade que em "As Mil e Uma Noites" se vai mais longe na exploração deste vínculo. Isto fica claro desde logo na legenda que principia cada um dos volumes e que informa o espectador de que, o que vai ver a seguir, não é uma adaptação fiel de "As Mil e Uma Noites", o grande clássico da literatura árabe, mas antes um olhar engajado sobre um triste país fustigado pela austeridade imposta por um governo “aparentemente desprovido de justiça social”.

A narrativa nómada, que se inspira na estrutura do livro, organizado em episódios interligados, parte de factos verídicos, passados em Portugal entre Agosto de 2013 e meados de 2014, recolhidos por um grupo de jornalistas e ficcionados pelos argumentistas – o chamado “comité central”.

A estratégia, ao que julgo inédita, obrigou a um trabalho árduo da equipa que durante um ano andou por todo o país, ao sabor de acontecimentos imprevistos, para nos dar conta de uma terrível praga de vespas asiáticas, da situação desesperada dos desempregados de longa duração, dos amores que incendiaram (literalmente) Resende e muitas outras histórias.

Quem vê a fuga do realizador no prólogo do primeiro volume não adivinha, pois, a coragem necessária para levar a cabo tamanha aventura, norteada pelo desejo insensato de ligar a realidade e a fantasia. É, de resto, o próprio Miguel Gomes o primeiro a duvidar do sucesso da campanha: toda a gente sabe que não é possível falar do que se passa em Portugal e contar “belas histórias”. Os seus filmes estão aí para o contradizer.

"Aquele Querido Mês de Agosto" (2008) é um exemplo maior dessa relação desde sempre incestuosa entre documentário e ficção. Mais do que "Tabu" ou "Redemption", é naquele que encontramos o precursor natural de muitas das ideias, temas e estratégias agora retomadas em "As Mil e Uma Noites": a autorreflexividade, o uso de atores não-profissionais, a preferência por filmar lugares afastados do centro (urbano/cultural), etc.

Olhando para trás, os bailes de Verão por terras de Arganil parecem-nos tão reais e tão mágicos como a magnífica Bagdade que Gomes planta à beira-mar. Paulo “Moleiro”, o tipo que todos os anos se atira da ponte sobre o rio Ave, podia perfeitamente protagonizar uma das histórias de Xerazade. Nem sempre é fácil, nem importante, distinguir entre o que é factual e o que foi inventado, fabricado. O que a câmara nos mostra está vivo, e isso é misterioso e lindo.

Porém, num filme tão longo quanto "As Mil e Uma Noites", é normal que existam alguns desequilíbrios. Entre os episódios menos conseguidos estão as sátiras “Os Homens de Pau Feito” e “História do Galo e do Fogo”, casos onde o efeito cómico pareceu por vezes francamente forçado.

“As Lágrimas da Juíza”, pelo contrário, representa um ponto alto do trabalho dos argumentistas que conseguem juntar, como que num vórtice sarcástico, toda uma série de pequenos delitos, que por sua vez se desdobram em conexões absurdas com repercussões delirantes.

Mas o auge da narração acontece, de facto, no último volume. Xerazade sente-se então incapaz de continuar o relato com que todos os dias distrai o Rei, adiando assim a sua morte, e foge do palácio para se juntar aos bandidos, músicos e forasteiros que encontra ao acaso pelo reino. Entre eles está Paddleman, um homem muito belo e muito estúpido. A constatação de que as duas coisas – a beleza e a estupidez – podem coincidir é muito importante e pode ajudar-nos a perceber melhor "As Mil e Uma Noites".

Depois de encontrar o seu pai, o Grão-Vizir, que a convence a voltar ao palácio, Xarazade é transportada numa liteira, por entre um qualquer parque de estacionamento, e a luz dourada e rósea do crepúsculo anuncia a noite. A princesa retoma então o seu relato: “Oh venturoso Rei, fui sabedora que em antigos bairros de lata de Lisboa, existia uma comunidade de homens enfeitiçados que, com rigor e paixão, se dedicava a ensinar pássaros a cantar…”. A história dos passarinheiros, que ocupa praticamente todo o terceiro volume, dá-nos a conhecer por dentro uma espécie de sociedade secreta, com uma linguagem e um código de conduta bastante precisos. Ficamos a saber, por exemplo, que “virar” um pássaro significa ensinar-lhe um novo canto. E entre “pegas”, “pancadas” e “remates”, são inúmeras as combinações e variações de canto possíveis. Um bom tentilhão é capaz de passar dos duzentos cantares em 15 minutos! Os concursos, que têm lugar em Maio, nos arredores de Lisboa, atraem centenas de homens de barba rija que ali se juntam para ver quem tem o pássaro mais valente (aquele que canta mais). Mas é também a honra do passarinheiro que está em causa e houve já até quem morresse de emoção nestes concursos.

“O Inebriante Canto dos Tentilhões” é um daqueles exemplos onde a realidade supera em absoluto a ficção. Entre as pilhas de cds e mp3 que, para desespero das mulheres dos passarinheiros, reproduzem em loop os cantares de mestres com que os mais jovens tentam virar os seus pássaros, irrompe, de forma inesperada, uma beleza. A nossa incredulidade e preconceito dá lugar ao fascínio. É evidente que quem antes não gostava de Marante não saiu da sessão d’«Aquele Querido Mês de Agosto» com vontade de ir ouvir na integra o último disco dos Diapasão; do mesmo modo, não creio que depois d’«As Mil e Uma Noites» sejam muitos os que se vão dedicar a fazer remixes de cantares de tentilhões. Mas é verdade que Gomes tem um jeito de escapar à armadilha do ridículo sem cair no romantismo balofo. Em «O Encantado», a atenção da câmara descobre a força revolucionária do belo numa atividade perfeitamente inútil: ensinar pássaros a cantar. Mas, justamente, a beleza está em não precisar de ser mais nada, não precisa de justificação ou legitimação. É esse também o poder das histórias.

A analogia é delicada e trágica: tal como Xerazade, os tentilhões, que são pássaros territoriais, cantam para defender a sua casa, cantam para não serem mortos; mas, às vezes, podem morrer de tanto cantar. Foi esse o risco que Miguel Gomes aceitou correr com este filme polifónico, e não perdeu.

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