A HISTÓRIA: Figura frágil e ingénua num mundo sem amor, Gelsomina é vendida pela mãe a Zampanò (Anthony Quinn), um saltimbanco forte e bruto que a leva para trabalhar com ele na sua vida de estrada, dando-lhe um número burlesco. Quando este encontra um velho rival, o artista que dá pela alcunha de “O Louco” (Richard Basehart), a fúria do homem musculado é provocada até ao ponto de rutura.

"A Estrada": reposição nos cinemas a 13 de agosto.


Crítica: Hugo Gomes

“Quando nasces. Quando morres. Quem sabe? Não, eu não sei qual é o propósito desta pedra, mas ela deve ter um, porque se esta pedra não tem propósito, então tudo é inútil. Até as estrelas! Pelo menos, acho que sim. E tu também. Tu também tens um propósito.” - O Louco

“A Estrada” do título não é mais do que um percurso entre duas trágicas figuras que se complementam através do comum das suas inocências. É mais do que uma alusão à vida, como se esta fosse um trilho predestinado, por vezes curto, ou longo, incansável ou movimentado. E é sob esse veio que o destino dos dois farrapos errantes se unem, os de Gelsomina (Giuletta Masina) e Zampanò (Anthony Quinn). Não por amor, mas pela visão que cada um tem dessa mesma... estrada.

Antes de voltarmos ao caminho de malas prontas e de mente determinada em seguir este desconhecido horizonte, devemos contextualizar o seguinte: o realizador Federico Fellini participou de forma ativa na definição e estabilização do movimento neorrealista italiano (a estética da realidade de um ponto de vista ideológico), encorajando-o enquanto argumentista (por exemplo, foi um dos colaboradores de "Roma, Cidade Aberta").

Com “A Estrada”, Fellini comunicou diretamente com esse jeito de estar e pensar em relação aos seus personagens, criando com isto um filme em constante mudança, e igualmente fiel aos propósitos da estética concebida pelo Neorrealismo.

Esta é uma obra de rua, de marginalizados e de detalhes sociais que pontuam a austera vida do sul italiano (o tal maneirista e suadamente festivo sul), em contraste com o norte comedido e “privilegiado” (que perdura até hoje, mais de 65 anos após a estreia do filme).

Mesmo assim, “A Estrada” é também um importante manifesto de uma das marcas de Fellini na sua demanda cinematográfica: a farsa. Seja a encoberta pelos trajes circenses (melhor cenário de ilusões não poderia haver), seja a de tom irónico (aliás, cruelmente irónico) perante os seus peões, obrigados a viver nos parâmetros de uma fábula recontada.

Fellini sonhava com a distância do Neorrealismo que ajudou a criar, mas de pavio curto. Deparou-se com encruzilhadas e desfechos diferentes que o levaram ao encontro de um novo tipo de autor. Foi assim que nasceu o termo "felliniano", que remete para a mentira prolongada e dos contornos bestializados das personagens que encenam num tremendo palco. "A Estrada”, o possível Fellini consensual, é a emotiva e triste moral resolvida nas areias da praia (a praia comumente representado como o fim do drama "felliniano", aqui e nos filmes seguintes).

Contrariando o nosso senso, e inspirado no discurso esfarrapado do Louco (a personagem de Richard Basehart que servirá sacrifício para o anti clímax), há um propósito destas inutilidades, destes vagabundos relacionados pelos seus próprios miserabilismos. "A Estrada" é uma viagem de apenas ida, complementada com a emblemática sonoridade de Nino Rota (o compositor predileto de Fellini), também ele participante desta peregrinação a nenhures. E por fim, os iluminados e tristes olhos de Giuletta Masina, que hipnotizam e nos fazem rever a compaixão destes “inúteis”...